Além do divã: conheça a intimidade entre Freud e os cães

Por quase toda vida, Freud e os cães não tiveram uma boa relação. Isso mudou após a chegada de Wolf e posteriormente Jofi. Leia mais!

Durante quase toda sua vida, Freud e os cães não tiveram uma boa relação. O psicanalista só lidava com os animais quando eles apareciam nos sonhos de seus pacientes, ao mordê-los ou ao se converterem na personificação de parentes difíceis.

Mas isso mudou quando, por volta da década de 1920, sua filha Anna, então com 30 anos, apresentou ao seu pai Wolf, um inteligentíssimo pastor alemão. Wolf chegou à vida de Anna para protegê-la durante suas caminhadas noturnas por Viena.

Ao conviver com o pastor alemão, Freud ficou totalmente encantado pelo animal. Tanto que em 1925, sua filha Anna passou a ter ciúmes da relação entre os dois, e teria escrito em seu diário:

“Não dei presente de aniversário para papai [este ano] porque não há presente adequado para a ocasião. Trouxe apenas uma foto de Wolf, em forma de uma brincadeira, porque sempre afirmo que ele transferiu todo o seu interesse que tinha por mim, para Wolf. Ele ficou satisfeito com isso”.

Freud e os cães
Anna e Sigmund Freud com Wolf, 1930
Direitos Autorais: Freud Museum London

Wolf era super obediente e todas as manhãs, ele e Anna saiam de casa para caminhar. Segundo o site Freud Museum London, em uma dessas manhãs, a caminhada da dupla foi prejudicada pelo tiroteio dos soldados.

O cachorro, assustado com o barulho dos tiros, fugiu. Anna tentou encontrá-lo pelas imediações sem sucesso, o que causou uma profunda angústia na filha de Freud. Ao voltar para casa, ela encontrou Wolf, que a estava esperando.

De acordo com o relato escrito em seu diário, Wolf teria voltado para casa com a ajuda de um motorista de táxi, que revelou para Anna que o cachorro pulou na traseira do carro e resistiu em sair. 

Nisso, ele teria visto a placa de identificação do animal, que dizia “Professor Freud, Berggasse 19”, e assim o motorista levou Wolf para sua casa, ainda em Viena, em segurança. Freud pagou a passagem do pastor alemão.

Era Wolf quem também se encarregava de afugentar os pretendentes inadequados de Anna. Ele às vezes dava algumas beliscadas nos homens, a fim de mandá-los embora. Essa atitude acabou divertindo o próprio Freud, que registrou em seu diário:

“Os cães amam seus amigos e mordem seus inimigos. Bem ao contrário das pessoas, que são incapazes de manifestar um amor puro e sempre misturam amor e ódio em suas relações”.

Sigmund Freud

Para o biógrafo do psicanalista, Ernest Jones, é possível que a afeição desenvolvida por Wolf tenha sido um modo de apoio emocional que Freud encontrou para lidar com a perda de seu neto, Heinele, que morreu bem jovem.

Em suas anotações, é possível observar as primeiras menções do uso de cães para fins de diagnóstico e terapia.

Tanto que hoje eles são presenças frequentemente vistas em hospitais infantis e até em asilos. Existem inúmeros artigos científicos que comprovam que o simples ato de fazer carinho em um cachorro, ajuda a lidar com picos de pressão alta.

A ideia de ter um cachorro foi inspirada por uma amiga íntima do psicanalista, a autora e também psicanalista Princesa Marie Bonaparte. Após uma das inúmeras cirurgias para controlar o câncer na mandíbula, em 1923, Freud obteve consolo em sua recuperação através do cachorro da princesa, que era um chow chow chamado Topsy.

Já em 1928, Dorothy Burlingham, amiga íntima de Freud, deu a ele uma linda chow chow, e a chamou de Lün-Yu. Foi com ela que o psicanalista se converteu totalmente à devoção canina

Infelizmente, Lün-Yu foi atropelada por um trem, 15 meses depois da sua chegada à família. Completamente devastado, Freud lamentou a morte da cachorrinha como se ela fosse um ser humano. 

Freud e os cães: a chegada de Jofi

Freud e os cães
Freud e Jofi.
Direitos Autorais: Freud Museum London

Passaram-se sete meses antes que ele se sentisse emocionalmente capaz em aceitar Jofi, a irmã de Lün-Yu, em sua casa. Já em 1930, praticamente todos os grandes amigos de Freud já tinham falecido, inclusive boa parte de seus colegas. 

Estando no exterior e sendo reconhecido por ser um homem que conseguia manter suas emoções sob controle, o psicanalista passou a demonstrar uma irritação incomum com sua esposa Martha.

Após algumas semanas de convivência com Jofi, Freud tinha a cachorrinha como sua companheira inseparável. Ele simplesmente adorava tudo que ela fazia e escrevia constantemente sobre suas façanhas em seus diários.

“Sinto falta dela agora, quase tanto quanto do meu charuto. Ela é uma criatura encantadora, tão interessante em suas características femininas também, selvagem, impulsiva, inteligente e, no entanto, não tão dependente quanto os cães costumam ser”.

Freud sobre a presença de Jofi em sua vida.

Afetado pelo câncer, Freud precisou viajar a Berlim para colocar uma prótese em sua mandíbula. Martha não gostava de cachorros, e então enquanto o psicanalista estava fora, ela teria enviado Jofi para um canil.

Desconsolado com a notícia, Freud escreveu à esposa:

“Alguém está visitando Jofi? Sinto muita falta dela”.

Sigmund Freud

Já em casa, não havia atividade familiar em que a chow chow fosse excluída. Freud sempre a alimentava com pedaços de sua comida que ele mesmo escolhia para ela. Por sentir fortes dores em sua mandíbula, Jofi terminava comendo todo o jantar, algo que provavelmente contribuiu para sua aparência rechonchuda.

À medida que o câncer cobrava seu preço, as análises se tornavam cada vez mais cansativas para Freud. Entretanto, Jofi sempre o acompanhava em suas sessões, como uma boa ouvinte e bastante pendente ao relógio.

Era Jofi quem sinalizava a Freud o fim de cada sessão com bocejos e alongamentos. Ela nunca permitiu que seu tutor ultrapassasse a hora estabelecida para cada paciente, nem mesmo por um minuto.

Inclusive, existem relatos de algumas pacientes de Freud que confirmam a versão.

A poetisa Hilda Doolittle teria ficado tão irritada como a cachorra estava se comportando na sessão que comentou que Freud “estava mais interessado em Jofi do que em minha história”.

Durante essa época, Freud percebeu que a presença de Jofi ajudava a reduzir a tensão dos pacientes durante as sessões. Eles se abriam com maior facilidade e ainda mais quando a chow chow estava presente. Essa interação era mais percebida em relação a crianças e adolescentes.

Jofi tinha um sentido muito apurado: ela conseguia “detectar” os níveis de ansiedade e tensão dos pacientes. Quanto mais altos eram, ela se sentava um pouco mais longe do icônico divã de Freud.

Se um paciente estivesse deprimido, Jofi sentava-se perto dele, ficando disponível para receber carinhos e mimos.

O psiquiatra Roy Grinker foi atendido por Freud em 1932. De acordo com os relatos encontrados nos diários do psicanalista, Jofi teria se deitado ao lado do sofá durante toda a terapia. 

Freud e os cães
Sigmund Freud com Jofi em Grinzing, Viena, 1937 e Anna Freud com Wolf, 1927.
Direitos Autorais: Freud Museum London

Em uma das sessões, ela teria se levantado e ido até a porta, para poder sair. Freud disse a Grinker: “Jofi não aprova o que você está dizendo”. Quando ela arranhava a porta para poder entrar de novo na sala, Freud dizia que “Jofi decidiu te dar outra chance”.

E em outra sessão, quando Grinker estava especialmente emocionado, Jofi teria pulado sobre o psiquiatra enquanto ele estava deitado no divã. Freud teria dito: “Veja, Jofi está tão animada que você conseguiu descobrir a fonte de sua ansiedade!”.

A chow chow também serviu de apoio emocional a Freud, principalmente quando ele passou por uma série de cirurgias bucais. Em uma de suas cartas, endereçada a uma de suas amigas, Marie Bonaparte, ele disse: 

“Gostaria que você pudesse ter visto comigo a simpatia que Jofi me mostra durante esses dias infernais, como se ela entendesse tudo”.

Freud à Marie Bonaparte sobre Jofi.

A cachorrinha passou a ser o centro do universo do psicanalista, tanto que sua saúde e felicidade se tornaram sua principal prioridade. Ao saber que ela sofria com cistos ovarianos, Freud conseguiu que ela fosse submetida a uma cirurgia para a remoção.

Por ser uma cirurgia bastante complexa, Jofi sofreu uma parada cardíaca e faleceu em 11 de janeiro de 1937, deixando Freud completamente devastado. Em suas cartas escritas ao amigo e romancista alemão Arnold Zweig, ele expressa a profunda tristeza que sentia à época:

“Além de qualquer luto, é muito irreal, e a gente se pergunta quando vai se acostumar com isso. Mas, é claro, não é fácil superar sete anos de intimidade”.

Freud, após o falecimento de Jofi.

Após o falecimento de Jofi, Freud adquiriu outra chow chow, a quem chamou de Lün, em homenagem à sua primeira cachorrinha. À essa altura, a guerra já estava sobre eles e no ano seguinte, toda a família foi forçada a fugir dos nazistas.

Em 1938, Viena estava em plena turbulência política. O partido nazista queimou inúmeros livros de Freud publicamente e a família vivia sob constante ameaça dos nazistas. A princesa Marie Bonaparte conseguiu que Freud e sua família escapassem para Paris e depois para Londres. Lün foi com a família.

Já com a nova cachorrinha, Freud e sua família se mudaram para uma casa bastante espaçosa ao norte de Londres, com um grande jardim gramado.

Hoje, essa casa tornou-se o museu, que ainda mantém fielmente o consultório onde ele atendia seus pacientes. Também estão presentes o divã, coberto com tapeçaria e seus óculos de armação redonda.

A casa abriga inúmeros retratos dos cães da família de Freud. Há uma foto emoldurada de Anna com Jofi II, em homenagem à primeira Jofi.

Também um outro retrato, que foi bordado e está pendurado no quarto que pertenceu à filha de Freud, junto com uma cópia do poema que Wolf teria escrito para Freud em virtude de seu 70° aniversário.

“Minha família, e meu pai, de maneira enfática, inconscientemente se tornaram amantes de cachorros”.

Martin Freud

Freud e os cães: poemas

É interessante observar que os passeios de táxi não foram a única maneira em que os cachorros tinham “comportamentos humanos”. Todos os anos, sempre nos aniversários de Freud, os cachorros escreviam poemas para ele.

Freud e os cães
Poema de Wolf, Jofi e Tattoun para Freud, 6 de maio de 1931. Direitos Autorais: Freud Museum London

Obviamente é muito provável que esses poemas tenham sido escritos por Anna ou por Martin, mas todos eram sempre assinados com os nomes dos cachorros. No aniversário de 71 anos de Freud, Anna, como Wolf, escreveu:

No dia de um Lobo ou de um cão 
todas as horas, pode-se dizer  
são iguais aos seus olhos.
Para seguir uma trilha, 
ou para abanar o rabo, 
qualquer hora é certa.
Mas quem, por muito tempo 
entre os erros humanos
hábitos têm sua habitação
se esforçará de todo o coração
para imitar sua arte
de parabéns.
Então, aquele coroado para o seu banquete
é um animal de cauda.

Freud e os cães: o último cachorro 

Na história entre Freud e os cães, podemos destacar qual foi sua última cachorra. Lun foi levada pela família para Londres em 1938, quando deixaram Viena após a cidade ser ocupada pelos nazistas. A cachorra precisou ficar em quarentena em Ladbroke Grove, que demorou seis meses.

No vídeo é possível ver Sigmund Freud com um de seus cães.

Freud, que à época já estava com 82 anos, era completamente devoto de Lün e logo após que a família se instalou em sua nova casa, ele foi até o canil onde estava a pequena.

O gerente do canil relatou que “nunca tinha visto tanta felicidade e compreensão” entre Freud e os cães, principalmente porque via a lealdade nos olhos da cachorra.

“Ele [Freud] brincou com ela, conversou, a chamava por nomes carinhosos por quase uma hora inteira”.

Enquanto Lün estava fora, um pequinês chamado Jumbo foi trazido para fazer companhia ao psicanalista, mas, ainda que o plano fosse bem-intencionado, ele não funcionou.

Em 2 de dezembro de 1938, a liberação de Lün foi coberta pelo Daily Mail, que contou a história da cachorra após ser liberada da “prisão”. Na matéria, apareciam Anna e a princesa Marie Bonaparte, que cumprimentava Lün.

Freud e os cães
Sigmund Freud em sua casa com seus cachorros em Viena
em seu 80º aniversário, Viena, Áustria, 1936.
Direitos Autorais: Freud Museum London

A comovente soltura da cachorra foi amplamente coberta por outros jornais europeus, como o Evening Standard, Daily Herald e The Star, além de vários jornais em Bruxelas e em Paris, que terminaram contando a história de amor entre Freud e os cães ao longo dos últimos anos.

“Não é uma crítica ao estilo de vida britânico sugerir que um cachorro parece ser o membro mais importante de uma família”, Martin Freud.

Com o falecimento de Sigmund Freud, em 23 de setembro de 1939, Anna ficou com os chow chow de seu pai em sua casa, em Maresfield Gardens, onde passaram a fazer longas caminhadas. 

Na época do falecimento de Anna, em 1982, ela ainda tinha alguns chow chow, incluindo um que ela chamou de Jofi, em homenagem ao legado de Freud e os cães, que sempre estiveram ligados por fortes laços afetivos.

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Jimena Bautista
Jimena Bautista
Artigos: 156

2 comentários

  1. que história bonita a do Freud e os cachorros! n sabia que ele gostava de chow chow! ele foi prova de que os cachorros sentem sentimentos e podem nos ajudar, né?

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